I- Confesso que eu nunca estive satisfeito com o que vejo nos espelhos, todos, por toda minha vida. Recordo-me do meu primeiro espelho. Moldura de alguma madeira escura, simples mas bela, gosto até hoje. Espelho clássico, cheio de curvas e de modelo arredondado – modelo sim, porque design é conceito dos atuais. Passava muito tempo na frente dele, na inocência de não saber usá-lo. A infância me faz muita falta hoje.
II- A perda da inocência tornou-se pecado, e em seu lugar, a repugnância e a culpa por tê-la deixado escapar. Se eu tivesse descoberto que a culpa não foi minha seria tudo mais fácil. Eu queria, então, fitar os olhos no meu sorriso refletido, durante horas, de forma que não causasse estranheza para mim, e sobretudo para os outros. Para tanto me trajava homogêneo, afogando-me com fantasias e máscaras e falas decoradas e entonações nem um pouco distintas. O meio era cruel e a solução foi impensada. Mas a culpa me manteve calado, omitindo eu mesmo. Os espelhos eram outros, e eram tantos.. e eu já não podia reconhecê-los.
III- Mas o meu afogamento gerou rebeldia desordenada, intensa, e num ato em busca de ar, sobrevivência, despi-me de tudo que me cobria, arremessando cada peça em direções diferentes, uma delas atinge o espelho, rachadura, e por fim o maior baque: eu olhava o primeiro espelho que me permitia ser inteiro, e via um corpo nu, amorfo. Por baixo de todas as fantasias que montei, fantasias que tentei ser, durante alguns anos, não havia ninguém, não havia cicatriz, não havia nenhuma marca. Assim começa a minha vigília, partindo da primeira e única certeza: não quero ser como quem me rodeia.
Uma imagem formada diz quem você é e com quem deve andar; é a forma primitiva de criar raízes, de abrigar-se na tempestade dos dias, de não ver sozinho as loucuras mundanas. E eu enlouqueci. Sem perceber, quebrei um pequeno espelho e a busca era tão intensa, tornou o fato imperceptível: ajoelhei-me diante dos cacos, rasgando a pele das mãos, dos joelhos, o coração, e a pergunta que até então era sussurro, tornou-se grito. Entre cacos, sangue e lágrimas, só uma pergunta se ouvia repetidamente: quem? Depois a fotografia da cena, calmaria, e com o tempo, a descoberta.
IV- Após o delírio a imagem ia, aos poucos, se formando. Mas quiseram as forças maiores que eu me apaixonasse, e diante da imagem amada, minha forma enquadrada no espelho, que estava descobrindo(-se) com sorrisos, ficava menor, incompleta, defasada em muitos pontos. A cada olhar, a cada espelho, via a deformação, cada vez mais acentuada. Eu não queria mais me ver, queria ser visto. Espelhos cobertos, ‘sem importância’. Estava eu me tornando reflexo de quem eu venerava. Na busca pela resposta do amor, queria ser sua imagem bonita no espelho, a confirmação, a resposta que não tive. Mas no silêncio, no vazio da minha presença e nada mais, o que cobria o espelho caía, e meu reflexo me envergonhava novamente. Forçava-me amá-lo e eu não tinha o mesmo propósito. Mas as forças maiores me desencantaram.
V- Não me recordo quantos espelhos já vi, quantas imagens distorcidas já tive de mim mesmo, quantas formas e tamanhos e necessidades.. Com a imagem mais límpida a cada novo espelho, aprendi a brincar com meus reflexos, e gradualmente a utilizar cada um em seu momento adequado. Penso hoje que os espelhos que tenho me respondem do jeito que gostaria. Passo longos e intermináveis minutos em frente, olhos nos olhos e assim por diante.
Você pode apalpar a imagem do seu espelho ideal? Alcança seu reflexo? Cuide-se: espelhos matam.