domingo, 15 de maio de 2011

pensar em voz alta II

a: Voltou a chover aqui. A chuva torna as coisas mais escuras, menos nossas. Acho que choveu a noite toda, alguém ouviu? Pode chover toda chuva que houver mas o fato é que de noite eu não consigo ouvir. Então de manhã eu descubro a chuva nas marcas da chuva, no asfalto carimbado pelos pneus molhados, mostrando rastros que nossos olhos preferem ignorar ou ver de uma outra forma. Ué, choveu ontem à noite?

b: De manhã parece sempre uma nova chance. A água da chuva é desvirginada desfigurada apodrecida assim que encosta algo que faz parte desse mundo. Desvirginada desfigurada apodrecida agora a chuva. Agora a chuva é mais que antes. Seja como for. Os carros tratam de secar as ruas com pressa, sempre com pressa, e pedindo silêncio fazendo barulho. Muita pressa, muito barulho e pouco silêncio. Os ponteiros do meu relógio, uma linha horizontal onde ver os ciclos se repetindo parece muito mais difícil.

c: Mas de manhã parece sempre uma nova chance. Eu ando e vejo a água suja de ontem parada nos bueiros junto com muita sujeira. Eu tô falando sobre 'asfalto e a nova cidade' e 'impostos e governos e consciências' e 'hoje e ontem que ainda tá aqui'. Também tô falando de 'muita vazão pra pouco escape'. As poças são do chão com uma propriedade de mais ninguém. As poças são os espelhos do céu; não, de tudo que se põe a cima. Mas a realidade das poças é diferente diferente da nossa realidade. Em comum: as realidades são sujas, desvirginadas, desfiguradas, apodrecidas. Depois evapora e não se sabe muito bem. Volta? Volta. Sem saber. Volta.