quarta-feira, 12 de setembro de 2012

eu me apaixonei por um homem morto


-Eu não posso gozar aqui. 
-Ok.
Ele encostou o rosto no meu, o calor da respiração esquentando meus ouvidos. Eu o sentia imensamente maior que eu. Eu não posso gozar aqui: ele sussurrou isso no meu ouvido em tom de segredo, e ao mesmo tempo cuidadoso e acanhado e carinhoso. Nunca choveu tanto numa madrugada só; talvez eu só não tenha me importado porque tinha os seus braços em torno. Nós nos conhecemos às onze horas da noite, ao som da minha melhor música no fone de ouvido, expondo minha fragilidade.
Nós nos conhecemos de olhos fechados. No escuro. Minhas mãos foram meus olhos enquanto apalpavam e me falavam sobre o seu corpo, sobre o seu rosto. Sobre seus pêlos por crescer. Não me lembro do rosto e nunca soube o seu nome. Inventamos um acordo tácito de amor no escuro, de amor sem futuro. De amor sem som que não nossas respirações ofegantes, ou no máximo os trovões e a chuva. Amor sem palavra. À meia noite nos apaixonamos, e tudo em volta dormia.
E tudo seria tão vulgar... E foi tão vulgar, mas não só tão vulgar. Quando pela primeira vez eu encostei minha mão esquerda na sua perna direita, ele se aproximou. Eu quase com medo do possível desrespeito com que ele fosse prosseguir, ou quase desejando isso. Ele colocou a mão direita sobre minha mão esquerda e só acariciou minha mão. Ele ergueu a mão esquerda e acariciou meus cabelos. Ele me disse:
-eu te amo, também.
Quem diria? Quem iria saber? Um homem como ele... Se não fosse a força dos acasos premeditados, eu não seria capaz de saber o que é coragem. Eu não ia saber que o amor tem mais um jeito de se tornar possível. Ao mesmo tempo, o mesmo amor. Amor de língua grande, lábios macios que mordiam meus dedos, cabelos finos e certamente loiros, barba grossa e curta de homem. Pra onde ele iria? Onde ele está?
Quando eu abri meus olhos, nós já nos conhecíamos. Nossos olhos gritavam a mesma coisa: uma ânsia por conhecer, sob a luz precária dos postes que passavam. Nós nos conhecemos em preto e branco, num filme antigo, com imagens em sequência. Ânsia por enxergar mais. Nós gritávamos em silêncio: 
-quem é você? 
-e como isso é possível?
E trocávamos promessas de amor eterno. Na força das nossas pupilas dilatadas. Às quatro da manhã nós dormimos abraçados. Ele era o meu dono. Ele não queria nada além disso: colocou sua mão direita sobre minha perna direita, eu abracei seu forte braço direito, como se me segurasse da tempestade em uma árvore com raízes firmes. Deitei minha cabeça em seu ombro e nós decidimos dormir, como tudo em volta. Ele dormiu antes, eu acariciava seu corpo e cuidava pra que nada mudasse. Ele dizia:
-eu sou o teu dono.
Às onze horas eu o conheci. À meia noite eu me apaixonei por um homem morto. Às quatro horas da manhã nós decidimos dormir abraçados. Às cinco da manhã eu o sepultei sem palavras, sem ressentimentos. Às luzes se acenderam e nós não nos vimos. Não éramos os mesmos sob a luz branca. Decidimos não nos olhar, decidimos deixar que fosse só uma bela história, que pudesse assim, durar pra sempre. Fui embora pra sempre com seu cheiro nas minhas mãos.