segunda-feira, 28 de agosto de 2023

sujas pelo excesso de uso

Toca o interfone: pode subir, obrigado. Eu moro no terceiro andar e leva alguns minutos entre o interfone e a chegada. Eu nunca sei bem o que fazer com esse tempo.  Eu fico parado atrás da porta até quando me dou conta que isso soa estranho: quem espera a pessoa como se não tivesse fazendo nada? E eu tava, eu tava mesmo esperando. Eu ando um pouco e penso que talvez seja melhor esperar na porta, não tem nada que se faça em tão pouco tempo. Aí eu ouço. O elevador abrindo, os passos no corredor e, por mais que ele nunca tivesse vindo aqui, ele sabia exatamente o caminho. Ou será que ele já veio? A campainha. Eu calculo um tempo, como se estivesse ocupado e não parado atrás da porta. E eu abro. Ele sabia o meu nome, mas ele me disse o nome dele? A gente apertou a mão um do outro? Não lembro. Ele usava um boné e prendia uma parte do cabelo que mesmo escondido eu diria que é cacheado, talvez. Mas isso eu só descobri quando o vi de costas. Até então ele até parecia careca. Alguns homens excêntricos quase passam batidos. Não fosse o tempo que eu tive de olhar pra esse. Boné e galocha. É isso, frio, chuva. Mas o que mais me interessou foram as mãos. Elas não eram nem grandes, nem pequenas. Eram sujas. Muito sujas. Será que ele não lava as mãos? Elas devem ser ásperas. Será que ele me tocou com as as mãos ásperas ou eu tô inventando isso só porque elas são sujas? Ele me fala algumas coisas e eu respondo. Já não lembro mais. Às vezes fingindo interesse, mas às vezes interessado. E volto pras mãos quando me distraio. Como é permitido que uma pessoa entre na casa da outra com aquelas mãos sujas? Talvez eu devesse falar sobre isso. Isso é tão errado nos tempos de hoje, externalizar um incômodo diante de uma inconformidade estética. Eu afasto e censuro esses pensamentos, afinal, sou uma pessoa razoável e razoavelmente respeitosa e atenta à situação precária das pessoas e suas condições de trabalho. Mas, naquela situação, era só isso que era: uma inconformidade estética pros meus olhos. Eu mudei muito pouco, no fim das contas. Ele era inteiro sujo? As mãos eram, com certeza, mais sujas que o resto. Uma aliança dourada se destacava. Ela não era suja. Brilhava. Como será que aquele outro corpo, virtual e agora imaginado, podia se deixar ser tocado por aquelas mãos ásperas e sujas? Não tinha mais nada diante de mim: nem galocha, nem boné, nem rosto, nome ou cabelo preso. Só um par gigante de mãos sujas. Tinha algo de doce naquelas mãos gigantes e grossas. Me afetuei, não a ponto de tocá-las e nem elas queriam meu toque. Elas fizeram o que tinha que fazer. Foi embora e eu não lamento. Agora sinto nojo e falta das mãos sujas. Algumas coisas não são de fácil digestão e por isso duram mais.

Um comentário:

Thiago Ebel disse...

Primeiro - quem que ainda usa o blogspot em 2023 ?!

Segundo - que textao lindo e sensivel, adorei !

Um abracao,
Thiago