segunda-feira, 14 de junho de 2010

Um passarinho

Esses dias meu pai chegou aqui em casa e apertou a campainha. Eu sabia que ele viria, mas ainda assim fui surpreendido. Como quando eu era criança, quando minha mãe chegava em casa e eu ainda não tinha lavado a louça – apesar da bronca, todos os dias, a louça ficava à espera da campainha. Mas voltando àquele dia, como nos dias anteriores, algo tinha mudado dentro de mim. A minha sensação de tristeza agora tinha se tornado uma amargura, a casca da ferida, aparentemente a cura, mas a dor ainda pulsa por dentro, sem sangue e sem choro. Esse era eu, correndo pra atender a campainha.

Abri a porta e meu pai falava frases que justificavam o fato de estar com uma gaiola na mão e um sorriso besta no rosto, “a casa de não sei quem pegou fogo e ele iria abandonar esse passarinho” e coisas como “agora tu tens um amigo pra cuidar”, aquelas frases que meu pai sempre disse e que eu nunca gostei, sequer acreditava no teor ou dava importância, preferia ignorar mesmo.

Era surreal e ao mesmo tempo muito rápido pra mim, eu não entendia e algumas vezes eu perguntei “por que não soltá-lo?”. A essas horas eu indagava olhando pra gaiola, em cima do balcão. Não quis que ele ficasse pendurado na parede, assim parecia mais preso ainda. Com o tempo, e com alguma dificuldade, eu consegui compreender que ele sempre esteve preso. Hoje, ele não seria capaz de viver a imensidão e a força da realidade. Talvez nem eu seja. Talvez por isso, e por compreender agora tal fato, nos encarávamos, eu e o pássaro. O tempo, que tinha antes desacelerado, agora era uma pausa.

Aqueles olhos inexpressivos, de alguma forma me fitavam até piscar, sem dizer nada que fosse direto, mas óbvio, ele é um passarinho e qualquer coisa que eu pudesse interpretar seria incoerente. Ou não. Eu olhava pra ele e tudo que eu podia sentir era tristeza. Ele pouco se movia, eu então, estático. Um momento de eternidade, enquanto meu pai fazia ou falava algumas coisas que eu não me lembro. E naquela troca, no mínimo uma troca de olhares eu me doava além do compreensível, todo o meu pesar expelia lágrimas, que meu pai nem percebeu, em seu ritmo habitual. Estranheza. Eu e um pássaro, tão distantes e ao mesmo tempo, num fluxo e numa entrega pura e sensível. Mas que besteira.

Isso foi forte demais pra mim, e algum tempo eu fiquei sem pensar. Alguns dias, e eu preferia ignorar aquela presença. No fundo, é medo, do que eu ainda não tive coragem de tornar fluxo de consciência. Até agora não tive. Como é triste a existência que está tão distante da plenitude. Que jamais pode tê-la. Que no máximo ouve e vê o que tem depois da janela como um quadro inexplicável. Conhece mas não pode fazer parte. O pássaro? Também ele, mas eu me referia a mim agora.

Ai, hoje eu ouvi que a vida não é justa. Eu disse: e quem foi que falou que era pra ser? A falta de sentido da totalidade me assusta. A grandeza da totalidade me assusta. Prefiro calar.

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